Lucas Negreiro de Souza é Cientista Social e sua monografia, orientada por Victor Rabello Piaia, foi publicada em 2019 na Universidade Federal Fluminense, Niterói, curso de graduação em Ciências Sociais.
DESESTRUTURA: A qual pergunta a pesquisa responde? LUCAS NEGREIRO DE SOUZA: A primeira pergunta que a pesquisa buscou responder em seu início, de forma bastante ampla, foi como o caráter progressista das jornadas de junho de 2013 redundou no impeachment de Dilma Rousseff. Ou seja: se as jornadas favoreceram o surgimento de uma nova direita no Brasil. Como é uma questão muito abrangente, demos enfoque a algo específico que encontramos nos dados apresentados nos institutos de pesquisa e no debate bibliográfico sobre o tema: a pouca distinção referente ao posicionamento político dos manifestantes em 2013, nas jornadas, e 2015, já nas mobilizações pelo impeachment. Encontramos dados de manifestações pró-impeachment, já com os famosos patos da FIESP, em que a maioria dos manifestantes defendia políticas universais, públicas, na área da saúde, educação e transporte público. Havia uma contradição aparente, pois apesar de se posicionarem de forma semelhante à encontrada na pluralidade de 2013, agora os manifestantes estavam nas ruas para derrubar um governo de centro-esquerda, organizados por convocantes de direita cujo projeto político e econômico, de caráter (neo)liberal, se opunha à maioria dessas pautas. A partir disso buscamos justamente analisar como a atuação desses convocantes foi eficaz para superar essa contradição e se capitalizar sobre o horizonte político criado nas jornadas. Voltamos a atenção para atores novos, notadamente o MBL, que se organizou no interior das jornadas e, em nossa hipótese, teve atuação decisiva para a superação desse descasamento entre convocantes e manifestantes. Quais estratégias usaram para tal? De que maneira conseguiram se utilizar de um potencial a princípio progressista para produzir manifestações de direita? Foram a essas questões que a monografia buscou responder. DES: Por quê você se interessou por esse tema? Lucas: Eu era estudante do CEFET/RJ, unidade Maracanã, no médio/técnico, em 2013. Lá tive excelentes professores e estrutura, onde, além de ter tido contato com a sociologia, havia estímulo ao debate e ao pensamento crítico dos alunos sobre temas diversos. Quando o Movimento Passe Livre foi duramente reprimido em São Paulo nas mobilizações pela redução das tarifas dos ônibus, um colega de turma, também atuante no grêmio estudantil, me chamou para uma manifestação na Avenida Rio Branco. O tema me afetava diretamente, pois estudava no Rio morando em São Gonçalo, e o bilhete intermunicipal a que tinha direito não cobria todas as passagens necessárias para o deslocamento. Naquele dia tivemos 100 mil pessoas no centro da cidade, eu me encantei com a descoberta das ruas e seu potencial reivindicatório e participei de quase todo o ciclo de mobilizações ao longo do mês de junho. Entender como saímos daquela pluralidade, com ampla adesão a pautas progressistas, para um país governado pela extrema-direita é uma questão fundamental para mim. Em resumo, meu tema é resultado direto das minhas vivências e do recorte socioeconômico no qual estou inserido, algo corriqueiro nas ciências de uma forma geral. DES: Como a questão da desigualdade é tratada no seu trabalho? Lucas: Embora não aborde diretamente o tema, creio que seja a partir de dois pontos distintos: na análise da política econômica dos governos Lula e Dilma e na atuação das think tanks no Brasil. Busco elencar as razões, no primeiro capítulo da monografia, que podem ter contribuído para criar as condições do impeachment de Dilma Roussef. Dentre elas, recorrendo a bibliografia do período, abordo a escolha do PT por uma conciliação de classes baseada no consumo. O consumo é o principal instrumento de inclusão do programa econômico petista, pois permitia melhorar a qualidade de vida da maioria da população sem comprometer, e sim aumentando os ganhos da burguesia nacional, à medida que expandia o mercado consumidor em que ela atuava. Muitas coisas positivas saíram disso, como o aumento dos empregos formais e a política de aumento real do salário mínimo. Todavia, foi uma escolha política que não atacou a desigualdade estrutural que marca o país, e vai ter repercussões sobre a economia e a base de apoio do partido à época do impeachment. De forma breve, o Movimento Brasil Livre é o elo final, ou mais visível, de uma longa cadeia de think tanks liberais cuja atuação no Brasil remonta ao período pré-64. Financiadas por empresários nacionais e estrangeiros, o objetivo dessas organizações, especialmente após a redemocratização, é reconfigurar o debate público de forma que a discussão entre interesses coletivos e privados se torne uma disputa entre um Estado interventivo, corrupto e opressor e indivíduos incapazes de agir e fomentar o progresso da nação, pois há “Estado demais”. Trata-se de um discurso altamente ideológico que busca, sob uma roupagem moralista, incutir na população o ideário econômico neoliberal, que é o programa da burguesia nacional implementado hoje. O neoliberalismo reforça as desigualdades, à medida em que arranca o Estado de seu papel garantidor de direitos econômicos e sociais, deixando ainda mais vulneráveis as populações que tem em programas sociais e na educação e saúde públicas seus anteparos contra, não raro, a extrema-pobreza e a miséria. DES: Faça um resumo da sua pesquisa. Lucas: Objetiva-se perscrutar as relações entre as massivas manifestações de junho de 2013 e o ciclo de mobilizações pelo impeachment de Dilma Rousseff; mais especificamente, se as jornadas, conforme foram chamadas, de caráter plural e pautas difusas, favoreceram o crescimento da direita no Brasil. Além disso, busca-se perceber em que medida o Movimento Brasil Livre, um dos principais grupos convocantes do ciclo de mobilizações pelo impeachment, organizado no horizonte de 2013, contribuiu para a virada à direita na cena política nacional, e quais estratégias foram adotadas para tal. Partimos de revisão bibliográfica, que lastreou os dois primeiros capítulos, para a confrontação com dados colhidos em três dias distintos de manifestações, na Avenida Paulista, em São Paulo. A análise deles demonstra que não havia uma nova direita estabelecida já nos ciclos de protestos de 2015. Existia, inclusive, um descasamento entre as pautas de convocantes e manifestantes, ainda próximos à difusão de pautas de junho. A atuação do MBL e seu repertório de ação, incrementado à partir das novas ferramentas de mídia, que foram cruciais superar o descasamento e capitalizar sobre o potencial político das jornadas. Palavras-chave: jornadas de junho; MBL; impeachment; nova direita; repertório. DES: Quais foram as conclusões? Lucas: Concluímos que as jornadas de junho produziram uma abertura societária, onde, a partir da gigantesca mobilização, difusão de pautas e reivindicações, novos atores tiveram renovadas suas possibilidades de contestação ao poder estabelecido. No interior das manifestações havia grupos diversos, cujo caráter das demandas era majoritariamente progressista. Ainda que as jornadas tenham favorecido o surgimento de uma nova direita, esta não se encontrava pronta no horizonte de junho. Foi formada, sim, a partir do potencial político das jornadas, a partir de grupos – como o MBL - que, ao contrário da narrativa comum, não surgiram simplesmente, mas se organizaram dentro das mobilizações. A aparente contradição, confirmada pelas pesquisas, entre as ideias políticas e econômicas de manifestantes e convocantes é suplantada pelo MBL com a estratégia de focar na corrupção do governo, deixando seu programa econômico em segundo plano, e com a atualização dos repertórios de ação a partir de linguagem inovadora, voltada para a criação de fotomontagens na página do grupo no Facebook que também poderiam ser irradiadas para outras redes sociais, como o WhatsApp. É o MBL quem melhor usará as novas ferramentas de mídia para a produção de mobilização política. Muitas vezes assentadas em fake news e direcionando a figura do meme, de sua lógica polivocal, para a de pôsteres políticos, conseguiam reunir os afetos antipetistas e antigoverno atuando na linha tênue entre verdade e mentira, fruto do apocalipse informacional moderno, dando ar de produção jornalística à produção imagética e textual de cunho político. Assim o grupo conseguirá se capitalizar ante o potencial político produzido em 2013 e contribuir na guinada à direita da política nacional. DES: Quais foram suas principais dificuldades na escrita e no desenvolvimento da pesquisa? Lucas: A escrita do trabalho demorou a fluir, e só fluiu quando eu entendi que o importante era escrever, começar, pois o produto só estaria acabado após diversas revisões, não estaria pronto de imediato. O desenvolvimento foi pior porque, dada a proximidade histórica com o evento analisado, não havia muito material bibliográfico disponível. Como, por conciliar trabalhos e estudos, não havia a possibilidade de ir a campo coletar outros dados empíricos, tinha que encontrar pesquisas que ocorreram no calor dos acontecimentos para que pudesse embasar ou refutar minha tese. Não havia muitas, então tive que fazer algumas mudanças, como limitar minha análise a Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo, e fazer essa ressalva – do sudeste-centrismo nas análises sobre junho de 2013 - quando extrapolasse minhas conclusões para todo o país. DES: Quais problemas sociais você considera fundamentais de serem discutidos para uma reflexão sobre o tema da desigualdade? Lucas: Acredito que, em primeiro lugar, o entrecruzamento entre classe e as questões de gênero, raça e sexualidade são fundamentais. No Brasil, por exemplo, não se compreende bem a desigualdade entre a favela e o asfalto sem examinar a escravidão e seu legado pernicioso que ainda molda o país. O movimento Black Lives Matter é importante, pois, dentre outras coisas, tem levantado debates no mundo todo sobre o caráter estrutural do racismo e, também, sobre as motivações econômicos por trás dele, ontem e hoje. Depois, pensando no nosso caso específico, brasileiro, e dialogando com a monografia, considero a captura do debate público pelo ideário neoliberal um problema enorme que pede solução urgente. Essa captura só ocorreu porque a lógica do empreendedor se propagou de tal modo que hoje informais de toda ordem se consideram empreendedores e não se veem mais como trabalhadores precarizados; porque a atuação da Students for Liberty e do Estudantes pela Liberdade, por exemplo, foi tão eficaz que espalharam o anarcocapitalismo, teoria sem estofo científico algum, uma espécie de radicalização do paradigma neoliberal, entre os jovens de todo o país; porque a noção de interesse coletivo foi subtraída com a imagem de um Estado essencialmente corrupto, incapaz de assegurar direitos, apenas de promover a corrupção que, por sua vez, foi alçada a principal problema nacional, algo central nessa captura; porque, afinal, estamos diante de uma blitz ideológica fortemente financiada que não tem interesse algum na redução da desigualdade no Brasil. Ao contrário: age para acentuá-la. Esse é um problema gigantesco que temos, com repercussões nas próximas gerações. DES: Como você vê o impacto das políticas sociais nas questões tratadas no seu TCC? Lucas: Na monografia trabalho com grupos que buscam pautar o debate público à direita, com programa econômico liberalizante. Nesse sentido, atuam ou para acabar com políticas sociais reparadores e diminuidoras da desigualdade, ou para transformá-las em cada vez mais residuais. No entanto, as políticas sociais, em especial dos governos petistas, como as cotas para negros, pobres e índigenas nas universidades, o bolsa-família, o benefício de prestação continuada, a expansão das universidades e institutos federais, todas elas, ainda que não ataquem estruturalmente a desigualdade – como o faria uma reforma que tornasse a nossa tributação progressiva, por exemplo -, ajudaram a tornar o Brasil um país menos desigual. Lamentavelmente, essas conquistas estão ameaçadas hoje. DES: Quais recortes, como gênero e raça, você considera importantes para o debate da desigualdade brasileira? Lucas: Acredito que, sem menosprezar outros recortes e formas de opressão, e o cruzamento entre eles, a raça é o recorte mais importante para análise da desigualdade brasileira. O município em que moro, São Gonçalo, apresentava, em 2018, taxa de desemprego entre jovens de 34,7%, segundo pesquisa da Bem TV - Educação e Comunicação em parceria com a UFRJ. Muito acima da média nacional, que era de 12% à época, por tratar-se de município pobre que atua como cidade-dormitório de trabalhadores da região metropolitana. No entanto, quando recortamos por raça, encontramos um desemprego 14% maior dos jovens negros. É um desemprego muito superior ao registrado em países como Síria e Haiti. Mesmo num cenário de pobreza, portanto, em que as desigualdades por outros fatores tende a diminuir, a raça continua um fator determinante de acessos e possibilidades. DES: Quais teóricos você usou para fundamentar seu trabalho e você acha que devem ser relidos para discutir o enfrentamento das desigualdades sociais? Lucas: Os dois teóricos que embasam minha monografia são o Charles Tilly, com o conceito de repertório, e o Gramsci, com as noções de aparelho privado de hegemonia e intelectual orgânico. Acredito que o Gramsci seja importante para lançar luz sobre as disputas do presente, sobre a ação daqueles que lucram com a desigualdade, ainda mais num momento em que está tão estigmatizado por pessoas que, provavelmente, nunca o leram – e polarizam e deterioram o debate com essa estigmatização. DES: Na sua opinião, qual a relevância de realizar pesquisas sobre desigualdades no Brasil? Como você avalia o cenário para desenvolvimentos de pesquisa hoje no Brasil? Lucas: Pesquisas sobre desigualdade, suas facetas e quais políticas mais eficazes para combatê-la deveriam ser prioridades nacionais. O Brasil está entre os dez países mais desiguais do mundo e tinha mais de cem milhões de pessoas vivendo com menos de R$ 413,00 em 2018, o que deve piorar com a pandemia do corona vírus e a depressão econômica que sucederá, agravada pelo péssimo governo de Jair Bolsonaro. Sem discutirmos e enfrentarmos a desigualdade a fundo, com medidas também de alcance e caráter estrutural, não teremos um país capaz de oferecer vida digna á sua população. Pesquisar no Brasil de Jair Bolsonaro é remar contra a maré, pois temos um governo federal que atua contra as universidades e, mais especificamente, os cursos de ciências humanas. Para aqueles, como eu, que precisariam de bolsa para dar continuidade às pesquisas no mestrado e doutorado, torna-se quase inviável ter a academia e a carreira de pesquisador no horizonte. No entanto, acredito que não será possível reverter os avanços dos últimos anos no sentido de democratização do ensino federal, e que, no futuro, retornaremos ao caminho de promoção e incentivo da pesquisa e da educação.
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