Mariana Tafakgi Fragoso Silva é cientista social (UFF), pós-graduada em Educação Básica e Ciências Sociais (Colégio Pedro II) e mestranda em Ciências Sociais (PPCIS - Uerj). Sua monografia, sob orientação de Carolina Zuccarelli, foi publicada na Universidade Federal Fluminense, Niterói, curso de graduação em Ciências Sociais, em 2018.
Mariana Tafakgi é Cientista Social (UFF), pós graduada em Ciências Sociais e Educação Básica (Colégio Pedro II) e mestranda em Ciências Sociais (PPCIS - Uerj).
DESESTRUTURA: A qual pergunta a pesquisa responde? MARIANA TAFAKGI: A pesquisa se dedicou a investigar a existência de uma dimensão educativa na mobilização coletiva empreendida na Vila Autódromo para se opor às tentativas de remoção por parte da prefeitura do Rio de Janeiro. A ideia da temática deste trabalho surgiu a partir dos resultados de uma pesquisa de Iniciação Científica iniciada em 2014, proposta pela Prof. Leticia de Luna Freire, sobre os impactos sociais causados pelas intervenções urbanísticas no Rio de Janeiro no contexto de preparação da cidade para sediar os megaeventos esportivos, mais especificamente o deslocamento compulsório de pessoas na cidade. A minha pesquisa dentro deste projeto tinha como objetivo compreender os efeitos sobre a Vila Autódromo, localidade vizinha à principal instalação dos Jogos Olímpicos na Zona Oeste da cidade e ameaçada de remoção desde os anos 90. Todos os argumentos mobilizados pela prefeitura para desocupar a área onde a Vila Autódromo estava situada foram contestados pelo movimento de resistência constituído, evidenciando sua fragilidade. Com o anúncio da construção Parque Olímpico da Barra da Tijuca no terreno onde antes existia o Autódromo de Jacarepaguá, foi apresentada uma proposta de reassentamento para seus moradores em um conjunto habitacional no bairro do Camorim. A prefeitura passou a utilizar de estratégias para pressionar os moradores a aceitarem o reassentamento e com isso muitos que queriam permanecer foram deixando a localidade, apesar do intenso movimento de resistência. Até que em julho de 2016, uma semana antes dos Jogos Olímpicos, a prefeitura entregou a urbanização da Vila Autódromo para as 20 famílias restantes. A pesquisa inicialmente priorizou identificar e descrever os efeitos do processo de remoção na vida das famílias, como, por exemplo, o desmantelamento de relações sociais entre vizinhos e familiares e da infraestrutura local, a relação com os funcionários da prefeitura e a mobilização em torno da permanência. Contudo, ao longo do processo de pesquisa, outros efeitos foram percebidos, além daqueles provocados pela remoção: os engendrados pela movimentação em torno da resistência, designado por mim de mobilização coletiva. São esses efeitos que me fizeram atentar para uma possível dimensão educativa do processo e que busquei investigar na monografia. Podemos dizer que parti de duas hipóteses: a primeira era que existia uma dimensão educativa na mobilização coletiva, pois esta aparentava ter impactado as trajetórias sociais dos agentes envolvidos, moradores e apoiadores. A segunda era que esse processo poderia ser considerado uma experiência de educação não formal. A monografia buscou, portanto, investigar esses dois aspectos. Des: Por que você se interessou por esse tema? Mariana: A pesquisa que deu origem ao trabalho monográfico começou com a pesquisa de Iniciação Científica já mencionada. Comecei então a atentar para as possíveis questões que, posteriormente, orientaram a monografia de conclusão de curso de Licenciatura em Ciências Sociais, orientada pela professora Carolina Zuccarelli e coorientada pelo professor Erick Omena. O tema da Iniciação Científica me interessou, e creio ter sido uma das motivações para ter sido selecionada para fazer a pesquisa, pelo fato de que, além de ser moradora da região, havia passado por um recente processo de deslocamento compulsório por parte da prefeitura da cidade dentro do mesmo contexto. A casa da minha família na Taquara, em Jacarepaguá, foi demolida com a justificativa da construção da via expressa Transolímpica, uma das obras realizadas para sediar o megaevento. Apesar do processo de desapropriação da casa da minha família ter se dado de modo totalmente diferente do analisado na Vila Autódromo - neste ponto podemos perceber e situar as desigualdades existentes entre as formas que o poder público lida com os moradores da cidade, formas distintas baseados em critérios de classe e raça - creio que a minha experiência foi responsável pelo meu interesse inicial no tema. Contudo, também considero relevantes para o interesse contínuo no tema e sua transformação em trabalho final, a minha necessidade de, enquanto pesquisadora, estudar temas que considero urgentes para a transformação social. Portanto, a luta pelo direito à cidade e, posteriormente, pensar a dimensão educativa deste processo me interessaram enquanto tema de ocupação e pesquisa. Des: Como a questão da desigualdade é tratada no seu trabalho? Mariana: Acredito que a questão da desigualdade aparece quando pensamos porque a Vila Autódromo precisou se mobilizar para permanecer no lugar no qual suas famílias escolheram viver, visto que nunca existiu nenhuma justificativa que evidenciasse um interesse público naquele território que pudesse fundamentar sua necessidade de remoção. Todavia, sempre foi muito evidente, e esse foi o principal argumento do movimento de resistência, a existência de um interesse de determinados grupos naquela área. Além da Vila Autódromo estar localizada em uma região que passou por um intenso processo de valorização imobiliária, e ser cercada de condomínios de classe média alta, shoppings e hotéis, a construção do Parque Olímpico foi realizada por uma parceria público privada, através do consórcio formado pelas empresas Carvalho Hosken, Andrade Gutierrez e Odebrecht, que depois de realizar obras para os Jogos Olímpicos poderia explorar a área para seus empreendimentos imobiliários. Era muito nítido, e há um consenso entre os pesquisadores que se dedicaram ao tema, que existia um interesse dessas empresas naquela área e por isso a insistência em retirar os moradores da Vila Autódromo. Podemos pensar em como as transformações urbanísticas atingem de maneira distinta os moradores da cidade, favorecendo alguns grupos e desfavorecendo - e, mais do que isso - violando direitos de outros. Em como essas transformações, por mais que empreendidas pelo poder público com a prerrogativa de melhorar a infraestrutura da cidade, muitas vezes se mostram com objetivo de beneficiar grupos específicos, como empreiteiras e outros empresários, e atuam nos processos de mercantilização das cidades, vendendo-as como se fossem mercadorias. Para que isso ocorra, para que esse produto seja mais rentável, para que seja ainda mais valorizado, é preciso que ele esteja livre de "indesejáveis". Uma das formas mais antigas de se fazer isso é a remoção dos pobres e das favelas. Este processo não ocorre exclusivamente como consequência do contexto dos Jogos Olímpicos, as favelas sempre foram consideradas um problema. Problemas que seriam solucionados com a sua "extinção" ou expulsão para áreas periféricas. Os megaeventos apenas atualizam esse problema, ao colocar a cidade “na vitrine", garantindo mais subsídios, recursos e argumentos, e aumentando a urgência de reorganização da cidade em prol de alguns grupos. Des: Faça um resumo da sua pesquisa. Mariana: Inicialmente foi apresentado um panorama sobre o caso da Vila Autódromo, descrevendo rapidamente a construção da localidade, construída próxima ao Autódromo de Jacarepaguá, por volta da década de 70 e que em 2010, segundo dados do IBGE, possuía em torno de 1200 moradores. Posteriormente, foi apresentado o contexto das sucessivas tentativas de remoção, que remontam a década de 90 e foram baseadas nos mais diversos argumentos - sempre contestados pelo movimento de resistência-, desde ações civis públicas que alegavam que a Vila Autódromo causava “dano ao meio ambiente urbano, dano ao meio ambiente natural e dano estético, paisagístico e turístico”, até projetos no qual as moradias eram literalmente colocadas no centro de projetos de ampliação de avenidas e construções de alças viárias. Contudo, foi a construção do Parque Olímpico da Barra da Tijuca, no local onde situava-se o Autódromo, acompanhada de diversas estratégias de desocupação da área por parte da prefeitura que atuaram coagindo muitos moradores a aceitarem o reassentamento, que propiciou que a maioria dos moradores saíssem do local, restando atualmente 20 famílias contempladas com o projeto de urbanização inaugurado uma semana antes do megaevento, em 2016. A urbanização só foi possível por meio da incansável luta do movimento de resistência da Vila Autódromo, formado por moradores e apoiadores (pessoas externas à localidade que se empenharam na luta pela permanência). O movimento, através de variadas e criativas formas de resistência, alcançou muita notoriedade, no cenário nacional e internacional, configurando-se como uma emblemática mobilização coletiva pelo direito à cidade. Depois de apresentado esse panorama no qual se situa o movimento de resistência, busquei trazer os dispositivos, os meios utilizados pela mobilização coletiva para promover a permanência no local. Estes dispositivos foram por mim classificados em três eixos: articulações (com coletivos, movimentos sociais, organizações, universidades e pessoas do campo jornalístico, jurídico, acadêmico,etc.); eventos (organizados para visibilizar o caso na arena pública, convocar novos apoiadores, manter o local ocupado para fins de segurança contra ações arbitrárias por parte da prefeitura, apoiar os moradores que passavam pela pressão para deixarem suas casas, entre outros); apropriações (como os moradores se apropriaram das mudanças ocorridas, tanto com a morfologia da Vila Autódromo continuamente modificada, tanto pelas obras do Parque Olímpico como pelas demolições, quanto com a sua estrutura social, visto que as famílias foram se mudando pouco a pouco, desmantelando as relações familiares e de vizinhança). Posteriormente, busquei analisar o processo da mobilização coletiva a partir de conceitos da obra de Pierre Bourdieu, capital, campo e habitus. Esta escolha se deu pela percepção de que a associação de diferentes capitais no coletivo dessa mobilização garantiu a atuação da mesma em diversos campos, como o jurídico, jornalístico, acadêmico, político, que proporcionaram visibilidade e instrumentos de permanência, garantindo a força do movimento e a conquista da urbanização. Mais do que isso, foi proposto que práticas da mobilização coletiva podem ser interpretadas como resultantes da modificação do habitus dos agentes da mobilização coletiva, decorrentes das relações estabelecidas entre agentes (moradores e apoiadores) com os diversos campos, que transformaram o volume e a estrutura dos seus capitais. Esse processo de transformação do habitus ocorre, segundo Bourdieu, tanto a partir da movimentação e das lutas travadas dentro de um campo, através da circulação entre diferentes campos sociais, quanto por um trabalho de análise reflexiva sobre as próprias disposições, que são as estruturas mentais através das quais apreendem o mundo social. Utilizando a análise bourdieusiana, argumento que houve um processo de transformação de habitus dos integrantes do movimento de resistência da Vila Autódromo, alterando suas trajetórias sociais, permitindo afirmar que existiu então uma dimensão educativa. Por fim, busquei investigar se o processo de mobilização coletiva era contemplado pelas análises do campo da educação. Parti da hipótese que poderia ser incluído na categoria de "educação não formal" e busquei entender o lugar desses processos na educação. Para tal, analisei os conceitos de educação formal (aquela recebida na escola, normatizada), a educação informal (que os indivíduos assimilam pela família, pertencimento, região, território entre outros) e a não formal. A educação não formal ocorre via processos de compartilhamento de experiências, principalmente em espaços e ações coletivas cotidianas. Os processos educativos transcorrem nos territórios que acompanham as trajetórias de vida dos grupos e indivíduos, nos quais há processos interativos intencionais, em ambientes e situações construídas coletivamente, segundo diretrizes de certos grupos, nos quais usualmente a participação dos indivíduos é optativa, mas que também poderá ocorrer por forças de circunstâncias da vivência histórica de cada um. Os objetivos da educação não formal não são dados a priori, eles se constroem no processo interativo, gerando um processo educativo. Um modo de educar surge como resultado do processo voltado para os interesses e as necessidades que dele participam. A partir da análise empreendida, a mobilização coletiva da Vila Autódromo foi identificada enquanto um processo não formal de educação. Depois disso, busquei explanar sobre as possíveis relações entre educação não formal e educação formal, com o objetivo de explorar a relevância dos espaços não formais de educação e no seu reconhecimento enquanto educativos. Dentro do campo da aprendizagem social, foi distinguido esse processo de educação não formal de outras propostas educativas, que também se apresentam como educação social, mas que tem um caráter conservador, situando a experiência educativa da mobilização coletiva da Vila Autódromo em uma perspectiva emancipatória, não integradora a uma dada ordem social desigual. Des: Quais foram as conclusões? Mariana: A Vila Autódromo, pelo seu histórico de resistência às tentativas de remoção, pode ser considerada como um exemplo emblemático de mobilização coletiva dentre tantas que se mobilizam pelo direito à cidade. Apesar dessa ser apreendida inicialmente como uma reação à remoção, não podemos reduzir toda a experiência de resistência à sua permanência no território, mesmo que de uma pequena parte de seus moradores. Mas mais do que se manter nas condições em que os moradores já se encontravam, a experiência de resistência da Vila Autódromo é aqui entendida como uma insurgência de sujeitos, moradores e apoiadores, que produziu novas possibilidades. Ou seja, o “não ceder” poderia apenas se dar através de formas de contraposição, mas também se deu de forma criadora. Um exemplo que expressa essa análise é o Plano Popular de Urbanização da Vila Autódromo, uma proposta construída pelo movimento de resistência para se opor a oferecida pela prefeitura, mas não apenas por meio da não aceitação da condição imposta, a remoção, e sim a imposição de uma nova condição, a urbanização. Assim como alguns moradores encontraram formas e conseguiram se apropriar das condições de desmantelamento da localidade impostas pela prefeitura. Não é minha intenção minimizar os impactos negativos relativos ao processo de remoção. A proposta da monografia era reconhecer o processo de mobilização coletiva em seu potencial criador e educador. Dentro desse contexto, podemos perceber as especificidades dessa movimento de resistência, descrevendo as práticas “sutis”, como pensadas por Michel de Certeau, de se reinventar o cotidiano e também as táticas utilizadas por estes moradores para conseguir permanecer. As especificidades dessa movimento de resistência contribuíram para o alcance de uma posição de destaque no contexto de novas e variadas formas de mobilização coletiva, inclusive conquistando êxito em uma contenda desigual de forças com o Governo Municipal. Podemos dizer que os agentes da mobilização, moradores e apoiadores, aprenderam novas formas de existência na cidade, e a cidade aprendeu com a Vila Autódromo, novas formas de atuação política e pautas de luta, apesar e a partir das tentativas de asfixiamento e apagamento impostas pelo poder público. A conflituosidade operou como um mecanismo operacionalizador de análises acerca dos modos de se produzir o urbano, criou condições específicas que potencializam processos criativos contra-hegemônicos, que questionam a lógica de venda da cidade e da expulsão dos pobres das áreas valorizadas. Quanto a análise a partir dos conceitos de Bourdieu, podemos dizer que a ideia é que além dos efeitos esperados pela mobilização coletiva, permanência na localidade, a luta propiciou também mudanças nas próprias trajetórias dos agentes, através da modificação das disposições adquiridas, da complexificação dos seus habitus. As modificação das disposições adquiridas pelos agentes se referem a apropriação de discursos, práticas e espaços promovidos na relação entre os agentes nos campos em que a mobilização coletiva foi inserida, como universidades, manifestações, movimentos sociais e mecanismos de participação da política para obter êxito em sua disputa pela permanência no território. Os agentes, passam a ocupar novos campos, entrar em contato com capitais e habitus a partir do processo de ação coletiva. Bourdieu concebe o habitus como sendo produto da história, um sistema de disposições abertas, que não cessa de ser afrontado por experiências novas e, portanto, não cessa de ser afetado por elas. Desse modo, os agentes não estão livres dos condicionamentos sociais que produzem o habitus, mas atuam por intermédio de categorias de percepção e de apreciação social sobre a situação que os determinam. Atribuo ao processo de mobilização coletiva o contexto disponível para o arcabouço teórico, ideológico e linguístico apreendido pelos agentes, que todavia são responsáveis por sua apropriação. A dimensão criativa, e catalisadora de novas experiências do movimento, diz respeito a capacidade de modificação do próprio habitus, que se pensado enquanto um capital, enquanto um conhecimento adquirido, se transforma a partir da inserção do agente e suas disposições nos campos, que se percebem, apreciam e agem, de acordo com as estruturas em que foram submetidos. Esse processo portanto não é mecânico, e sim fruto de uma reflexão dos próprios agentes que precisam agir conforme o jogo social. Pensando a partir das discussões da educação, cheguei por fim a conclusão de que o processo analisado atende as características, as dimensões de atuação e as resultantes apresentadas pelos autores que se dedicaram a explorar os processos não formais de educação. A educação não formal caracteriza-se por possibilitar a transformação social possibilitando aos sujeitos participantes desse processo condições de interferirem na história transformando-a e, logo, transformando-se. O trabalho reconhece a mobilização coletiva como um processo de aprendizagem construído em processos sociais coletivos, participativos, onde a escola não é o centro do processo educativo. No caso da mobilização coletiva da Vila Autódromo, identifico além da luta organizada um empenho reflexivo por parte dos agentes, uma práxis, que configura o movimento enquanto emancipatório. Se pensarmos na construção de sujeitos ativos, participativos e críticos, é necessário reconhecer a contribuição das mobilizações coletivas, do movimento de resistência da Vila Autódromo e da educação não formal. Essa monografia tentou refletir sobre esses valiosos campos compromissados com lutas que visam à transformação da realidade social. Des: Quais foram suas principais dificuldades na escrita e no desenvolvimento da pesquisa? Mariana: Enfrentei dificuldades tanto na dimensão mais técnica, de construção de um texto na linguagem e adequação formal da língua portuguesa, quanto acadêmica, na construção e organização das ideias no formato adequado a uma monografia de graduação. Creio que isso reflete minha formação na Educação Básica e a própria formação superior, as quais não considero terem sido suficientes com relação à formação para a produção acadêmica. Em relação ao desenvolvimento da pesquisa, inicialmente tive dificuldades para compreender o processo de pesquisa de campo, em me entender enquanto pesquisadora, mas com o tempo fui entendendo melhor. Tive dificuldades também com o processo de autorização para realizar pesquisas nas escolas da região, mas acabei deixando essa metodologia de lado e não a explorei no trabalho monográfico. Des: Quais problemas sociais você considera fundamentais de serem discutidos para uma reflexão sobre o tema da desigualdade? Mariana: Como é um tema bem amplo, prefiro fazer um recorte sobre os meus temas de pesquisa. Depois dessa monografia aqui explorada, na pós-graduação venho trabalhando com as relações entre escola e adolescentes que cumprem medidas socioeducativas (aplicadas a adolescentes acusados de autoria de ato infracional). Nos dois temas, por mais que em campos diferentes, discuto sobre como direitos teoricamente estabelecidos para toda população brasileira (à moradia e à educação) são passíveis de serem negados e violados das mais diferentes formas pelo Estado entre os grupos socialmente demarcados a partir de sua raça e classe. Essa violação de direitos ocorre de modo a manter desigualdades estruturantes em nossa sociedade, beneficiando alguns e deixando morrer outros. Acho que precisamos ser radicais quando falamos em desigualdade, pois não estamos falando em menos oportunidades apenas, estamos falando de políticas de morte, por destruição da saúde física e psicológica, por negação de acesso à qualidade de vida, pensadas para manter essas populações presas ou morando o mais longe possível. Portanto, acho fundamental que além da constatação de problemas relativos à desigualdade, possamos utilizar o conhecimento acadêmico, principalmente das Ciências Sociais, para desvelar aspectos menos visíveis sobre esses problemas sociais. Por exemplo, no caso da Vila Autódromo, além de constatar a contenda entre poder público (associado ao capital privado) e comunidade, evidenciando como os pobres são tratados nesta cidade, procurei analisar como esses sujeitos encontram formas de resistir e se reinventar frente a esses processos, de modo a aprender e ensinar sobre direito à cidade, e como esses processos são importantes para pensarmos a educação emancipatória. No caso da minha pesquisa atual, venho pensando em como podemos articular discussões da sociologia da violência com as da sociologia da educação de modo a entender melhor o cenário de desinserção escolar acentuada entre os adolescentes acusados de autoria de ato infracional. Acredito que todos os problemas sociais que atingem a nossa população mais violentada são fundamentais para serem discutidos na reflexão sobre o tema da desigualdade. Contudo, creio que é essencial complexificar o debate para além da denúncia, buscando formas de auxiliar a reflexão e compreensão desses problemas. Des: Como você vê o impacto das políticas sociais nas questões tratadas no seu TCC? Mariana: No caso da monografia, vejo mais especificamente o impacto das políticas de moradia e de infraestrutura urbana empreendidas no Rio de Janeiro. Creio que podemos pensar nos objetivos das políticas e para quem são feitas. Acho que vale ressaltar que Eduardo Paes, prefeito da cidade durante os Jogos Olímpicos, quando era ainda subprefeito da região da Barra e Jacarepaguá em 1993, chegou a declarar publicamente no jornal de maior circulação no Rio de Janeiro que iria derrubar os muros das casas na Vila Autódromo, com ou sem polícia militar, pois “não podemos comprometer o futuro na Barra”. Carlos Carvalho, dono da Carvalho Hosken, empreiteira que participou do consórcio para realizar diversas obras dos Jogos e receber em troca a possibilidade de explorar as terras para empreendimentos imobiliários, quando questionado em entrevista para a BBC o porquê de não usar da Vila dos Atletas como moradia popular, como outros países sede fizeram, afirmou “como é que você vai botar pobre ali?” e completa dizendo que existe o conjunto habitacional para a “população de apoio”. O conjunto habitacional ao qual Carlos Carvalho se refere é o que foi proposto como forma de reassentamento dos moradores da Vila Autódromo, o conjunto residencial Parque Carioca, no bairro do Camorim, alvo de muitas críticas, envolvendo desde a polêmica aquisição do terreno − pertencente a duas empresas que apoiaram financeiramente a campanha eleitoral do prefeito Eduardo Paes − à qualificação de parte do terreno, pelo órgão público responsável, como de alto e médio risco ambiental, uma vez que se trata de antiga área de mineração. Ou seja, a própria prefeitura encaminhou moradores para um terreno considerado de risco. Podemos citar outros exemplos, como quando a prefeitura promoveu cadastramento com as famílias na Vila Autódromo alegando serem obras de saneamento na localidade, que se revelou posteriormente como sendo uma ação para subsidiar a remoção. O plano popular de urbanização construído pelo movimento de resistência da Vila Autódromo, além de contemplar os anseios daquele grupo, era muito mais vantajoso aos cofres públicos. Com orçamento previsto de R$ 13,5 milhões, valor que correspondia a 35% do valor previsto para o reassentamento no Parque Carioca. Hoje sabemos que esse número é muito inferior ao foi gasto no final do processo de remoção (reassentamento e indenizações) e urbanização da Vila Autódromo, cujas estimativas ultrapassaram os R$ 200 milhões. Poderíamos falar das questões envolvendo o programa Minha Casa Minha Vida que, ao invés de funcionar como um mecanismo de efetivação do direito à moradia, acabou sendo utilizado para subsidiar remoções de pessoas que já possuíam moradia. Poderíamos falar das irregularidades nos processos de remoção de pessoas, nos quais não foram respeitados vários parâmetros estabelecidos, como a distância do reassentamento e demolições irregulares. Podemos refletir também sobre a escolha de concentrar a maior parte das obras de infraestrutura urbana na Barra da Tijuca para sediar os Jogos Olímpicos ao invés de áreas que precisam de mais atenção em relação à sua infraestrutura. Des: Quais recortes, como gênero e raça, você considera importantes na análise da desigualdade brasileira? Mariana: Acho que ambos os recortes, raça e gênero, devem ser considerados relevantes para qualquer análise. Porém, incluiria também os de classe, bem como outros recortes, a depender de sua pertinência ao tema, tais como como territorial e etário, mas principalmente analisá-los sob o viés da interseccionalidade, pensando em suas relações. Mesmo que não a desigualdade não seja o tema central da pesquisa, é preciso pensar sobre quais sujeitos e grupos estamos falando, pois isso é essencial para a análise do autor. Portanto, creio que esses recortes devem ser sempre considerados em conjunto, sendo considerados como objeto de reflexão para a construção da pesquisa. Des: Quais teóricos você usou para fundamentar seu trabalho e você acha que devem ser relidos para discutir o enfrentamento das desigualdades sociais? Mariana: Usei poucos dos “grandes teóricos”, mais reconhecidos no campo das Ciências Sociais. Procurei priorizar autores nacionais e pesquisadores em formação que eu conheci durante a pesquisa que também estudavam sobre o caso da Vila Autódromo. Mas dentre esses mais conhecidos que são importantes no campo das desigualdades, utilizei o Pierre Bourdieu que é um autor referência para pensar as desigualdades educacionais, apesar de não ter usado com esse objetivo no monografia, e achar que deve ser utilizado com cautela quando transposto para o contexto brasileiro que possui especificidades. Também utilizo David Harvey, autor importante para a questão das desigualdades urbanas. Não indico tanto os teóricos que utilizei, creio que o mais fundamental quando pensamos em enfrentamento às desigualdades, e que hoje considero que fiz de forma insuficiente na monografia, é promover uma escrita atenta justamente a romper com a prática acadêmica de ler e utilizar apenas uma bibliografia sempre branca, européia e norte-americana, do sudeste, masculina, ou seja, pensar justamente nas nossas escolhas bibliográficas de modo a enfrentar desigualdades no nosso campo de produção acadêmica. Des: Na sua opinião, qual a relevância de realizar pesquisas sobre desigualdades no Brasil? Como você avalia o cenário para desenvolvimentos de pesquisa hoje no Brasil? Mariana: Creio que a desigualdade precisa ser central na nossa agenda de pesquisa enquanto formos um país extremamente racista e que coloca a sua população em condições indignas de sobrevivência, ao passo que uma pequena parte usufrui dos ganhos obtidos com a violência para com a maioria da população. E sobre o cenário da pesquisa, acho, infelizmente, muito ruim. A minha geração se encontra totalmente desesperançosa com o cenário atual de precarização do ensino superior, desvalorização da pesquisa e pós-graduação e falta de oportunidade no mercado de trabalho da área. Isso para os poucos que sobrevivem na vida da acadêmica, normalmente os mais privilegiados, pois muitos não podem ser dar ao luxo de investir em uma carreira que pode não oferecer meios de sustento. Ao cenário da universidade e pesquisa soma-se o cenário político que nos dá a impressão de estarmos caminhando para trás. O pouco recentemente conquistado em termos de recursos e incentivo vem sendo retirado e a impressão é de agravamento deste cenário. Por outro lado, mesmo assim ainda são realizadas boas pesquisas e temos grupos que lutam ativamente para mudar essa conjuntura, o que talvez signifique que podemos caminhar para um futuro melhor.
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