Emerson Luã Ferreira da Silva, é Cientista Social (UFF) e mestrando em Sociologia (PPGS - UFF). Sua monografia, sob orientação de Flávia Rios, foi publicada na Universidade Federal Fluminense, Niterói, curso de graduação em Ciências Sociais, em 2019. Lattes
Emerson Luã é Cientista Social (UFF), mestrando em Sociologia (PPGS-UFF) e sua monografia foi publicada em 2019, sob orientação da Professora Flávia Rios.
DESESTRUTURA: Qual pergunta a pesquisa responde? EMERSON LUÃ: Quem é o associado ao tráfico? A partir das categorias ‘usuário’ e ‘traficante’ da atual Lei de Drogas (11.343/2006), busco compreender como a criminalização com base nessa lei pode se dar em diferentes contextos mesmo que o alvo seja o mesmo: jovens negros e pobres. DES: Por que você se interessou por esse tema? EMERSON: Desde o início da graduação eu já me via trabalhando com alguma temática que abordasse o racismo no nosso sistema penal. Claro que o fato de eu ser um jovem negro contou muito, principalmente quando entrei na universidade e comecei a ter acesso aos debates em torno da população negra ser sempre o objeto de estudo na academia mas quase nunca o pesquisador. Até que pouco a pouco eu fui conhecendo intelectuais negros e me aproximando aos debates que eles já tinham iniciado sobre as relações raciais dentro das Ciências Sociais. Mas apesar de vários autores clássicos do pensamento negro, o que mais me chamou atenção foi a Ana Luiza Pinheiro Flauzina, autora do livro ‘Corpo Negro Caído no Chão: o Sistema Penal e o Projeto Genocida do Estado Brasileiro’, que eu li pela primeira vez nas férias entre o terceiro e quarto período. Naquela época eu já me preocupava muito com a minha monografia, mesmo sabendo que ainda faltava muito pra isso. Mas essa aproximação foi muito importante para que agora, no final do curso, eu tivesse uma carga de leitura suficiente para uma boa pesquisa bibliográfica. Nesse livro, que é a dissertação de mestrado em Direito da Flauzina, ela analisa como o racismo foi uma categoria fundante para a atuação do sistema penal brasileiro desde o Brasil Colônia até os dias de hoje. Durante toda a história criou-se diferentes leis cujo alvo tinha o controle social da população negra, que passou do controle privado dos senhores de escravos para as mãos do sistema penal do Estado. A Lei da Vadiagem é um clássico exemplo, pois era utilizada para criminalizar sujeitos que estivessem à toa pelas ruas, vadiando, como quem não tem um trabalho para fazer. Nessa época, logo após a abolição da escravidão, adivinha quem eram os desempregados? A população negra, é claro. Dessa forma, o entendimento jurídico e todo o aparato desse sistema nunca esteve a favor do negro. Pelo contrário, apenas o via como seu alvo, fazendo que essa população fosse controlada e sempre estivesse na tutela do Estado. A questão é que esse livro mudou a minha vida. E me apresentou todo um horizonte de pesquisa nas Ciências Sociais, com diversos autores dessas áreas que já se debruçaram sobre a questão do controle social operado pelo sistema penal. Foi assim que eu passei a compreender melhor os estudos de Foucault por exemplo. Eu já tinha lido algumas obras dele no primeiro período, mas naquela época ainda não tinha entendido muito bem a conexão dele com as questões da seletividade penal atualmente. Depois me aproximei da Criminologia Crítica, que a própria Flauzina se utiliza para fundamentar sua pesquisa, e desde então não saí mais dessa área. Pelo contrário, a cada ano que passava eu me aprofundava mais ainda e percebia as diversas possibilidades de conexão com outras grande áreas da Sociologia, como a Sociologia da Música por exemplo. A verdade é que a pesquisa sobre a política de drogas no Brasil é um tanto multidisciplinar. E foi ao perceber essas possibilidades que eu fiquei mais interessado em investigar um artigo em específico da Lei de Drogas, o art. 35 que diz respeito a associação ao tráfico. Muito se discute sobre a seletividade que opera na diferenciação entre o usuário e o traficante de drogas, mas, principalmente por ter se tornado um caso muito famoso no ano de 2019, a prisão do DJ Rennan da Penha me despertou para essa possível utilização dessa lei para criminalizar também todo um movimento cultural, saindo da esfera do indivíduo e entrando nesse âmbito mais cultural/musical, gerando todo um processo de criminalização do funk. A partir daí eu só fui me interessando cada vez mais pela temática, vendo como o buraco é muuuuito mais embaixo. E não é a toa que é essa a pesquisa que hoje eu desenvolvo no meu mestrado em Sociologia. DES: Como a questão da desigualdade é tratada no seu trabalho? EMERSON: A partir da compreensão de que o racismo é uma categoria fundante na atuação do sistema penal brasileiro. Quando a gente fala sobre guerra às drogas estamos, na verdade, falando de uma guerra contra a juventude negra, contra as favelas e periferias do país. Não estamos falando de grande operações policiais nos condomínios da Zona Sul ou das raves que são frequentadas por jovens brancos da classe média onde todo mundo sabe que também há tráfico de drogas. A desigualdade aparece aqui, e ela tem cor e CEP. Compreender o racismo enquanto categoria fundante desse sistema envolve reconhecer que o Estado Brasileiro sempre se utilizou de mecanismos legais, isto é, com respaldo jurídico, para controlar a população negra. Em primeiro lugar temos a escravidão, que por mais horrendo que possa parecer atualmente, na época se tratava de um mecanismo legal onde negros escravizados pertenciam por direito aos seus senhores. Quando a abolição finalmente chegou, o que aconteceu foi apenas uma mudança do controle privado desses senhores para o controle público do Estado. Com a lei da vadiagem, agora a massa populacional negra e desempregada enfrentava frequentemente problemas com a polícia, uma vez que, assim como hoje em dia, era a sua cultura que era criminalizada com base nessa tipificação penal. A capoeira ou o samba, por exemplo, eram símbolos de uma suposta vadiagem, e bastava ser pego com um pandeiro ou qualquer instrumento de percussão para terminar o dia na prisão. E em pleno século XXI a mesma coisa acontece, claro que de forma atualizada dentro de um contexto de ascensão do neoliberalismo em que vivemos no Brasil. A partir da década de 90, ao mesmo tempo em que as políticas proibicionistas criavam a imagem de um inimigo público a ser combatido (o traficante), caminhávamos para um cenário de desestruturação de um Estado de bem-estar social (Welfare State) para um Estado Penal, onde se diminuem as políticas sociais que combatem as desigualdades e as substituem por um processo de ‘hipertrofia súbita do Estado Penal’ (como aponta Loic Wacquant em ‘Punir os Pobres’) ao direcionar o tratamento das populações pobres ao sistema penal. Em poucas palavras, o resultado dessa ascensão neoliberal atrelado a política de combate às drogas resultou numa criminalização da pobreza e, ao invés de investimentos com saúde, educação, lazer etc, às favelas e periferias apenas se direcionaram políticas vindas dos órgãos de segurança pública, tudo com base em um discurso falido de combate às drogas. Atrelado a esse cenário está também a criminalização do funk, que também é impactado pela política proibicionista, principalmente no que diz respeito a criação da figura de um inimigo público nacional. Longe de ser uma coincidência, ao mesmo tempo em que se consolidava o neoliberalismo no Brasil, na década de 90, o movimento funk também vivia um processo de estigmatização operado em grande parte pela mídia. Na época, as brigas nos bailes funks começaram a ocupar grande parte da pauta midiática, principalmente após o episódio erroneamente divulgado como um arrastão onde, em 1992, jovens funkeiros brigavam entre si em plena Zona Sul, na praia do Arpoador. Esse evento com certeza assustou a população branca local e representou um marco na história da criminalização desse ritmo musical que começava a se consolidar. Esse papel importantíssimo que a mídia tem ao retratar de forma negativa o movimento funk se estende até os dias de hoje, seja pelas reportagens sensacionalistas de pequenos jornais ou até mesmo nos grandes, como a reportagem feita em 2019 pelo Fantástico explorando a suposta ligação ao tráfico do DJ Rennan da penha, cuja prisão também significou um marco temporal na história do funk e de sua criminalização. Por fim, todos esses processos contribuem para o aumento das desigualdades sociais e é importante buscar compreender como o racismo e a cultura do negro historicamente tem sido tratada pelo Estado brasileiro. Através da mídia se cria a imagem de um inimigo muito perigoso e que deve ser combatido a todo custo, mesmo que vidas inocentes se percam nessas tentativas ou que o objetivo de um mundo sem drogas jamais seja alcançado. DES: Faça um resumo da sua pesquisa. EMERSON: A princípio, a pesquisa procurava identificar em que medida a Lei de Drogas, por meio das práticas e discursos das agências do sistema penal, opera como um projeto político seletivo e contribui para o cenário de encarceramento em massa. Para isso, foi utilizado análise de dois casos emblemáticos, as prisões de Rafael Braga e do DJ Rennan da Penha, buscando refletir acerca da construção das categorias ‘usuário’, ‘traficante’ e ‘associado ao tráfico’. Atualmente estou explorando muito mais o segundo caso, do DJ Rennan, abordando a questão da criminalização cultural de forma mais ampla, partindo de outras leis e artigos do Código Penal que muitas vezes são utilizados para criminalizar os artistas de funk. O que me interessa nessas questões é como nesses casos novas possibilidades de criminalização da rede de sociabilidade da favela e das periferias dos grandes centros urbanos surgem o tempo todo no discurso jurídico e midiático, aprimorando cada vez mais um projeto político da necropolítica: uma política de um Estado soberano que decide quem pode viver e quem deve morrer. DES: Quais foram as conclusões? EMERSON: Primeiramente, que ainda há muito para se pesquisar e que o que eu fiz até agora foi só um pontapé inicial. As metodologias de pesquisa precisam ser aprimoradas e novas perguntas devem ser feitas. Por um lado, a pesquisa bibliográfica me fez perceber como houve todo um processo de desenvolvimento do poder punitivo do Estado ao longo do tempo. Foucault estuda a ‘economia do poder punitivo’, isto é, como o Estado mudava a forma de se punir de acordo com os novos interesses dos grupos hegemônicos da sociedade. Enquanto isso, Achille Mbembe vai pensar um pouco além da biopolítica e cunhar o conceito da necropolítica, isto é, de entender que essa forma de punir evoluiu tanto a ponto da morte já não ser uma punição, mas sim o objetivo final de uma ideologia de Estado, o neoliberalismo. Pensar a partir dessa lógica demonstra o porque a prisão nunca deu errado: talvez seus defeitos sejam, na verdade, seu real objetivo; Por outro, a análise de reportagens midiáticas demonstra como ao longo do tempo a mídia opera um papel muito importante no processo de criminalização do funk e das favelas e periferias. O discurso midiático trabalha lado a lado do discurso jurídico, facilitando que ninguém (ou quase ninguém) questione a efetividade dessas ações, afinal acredita-se se tratar de um bem necessário para a proteção de todos. Os dois casos analisados são de presos que se tornaram reivindicações recorrentes do Movimento Negro, e mesmo assim não houve uma retratação justa por parte da mídia da realidade desses sujeitos. Ou seja, imagina qual a imagem que a mídia passa dos tantos casos que acontecem cotidianamente mas ninguém fica sabendo? Por último, a análise das sentenças das prisões do Rafael Braga e do Rennan da Penha evidencia o discurso jurídico que produziu as decisões arbitrárias desses casos, sem reconhecer a realidade vivida por esses jovens. Enquanto Rafael teve um relato descartado porque a testemunha supostamente queria ajudá-lo só porque eram vizinhos, Rennan foi associado ao tráfico porque falava em grupos do Whatsapp que o ‘caveirão’ estava subindo o morro (uma dinâmica de qualquer pessoa que mora nas favelas do Rio e preza pela vida de seus entes queridos). DES: Quais foram suas principais dificuldades na escrita e no desenvolvimento da pesquisa? EMERSON: Adequar a pesquisa ao tempo e a metodologia disponível. Conforme avançamos na leitura mais ideias vão aparecendo e, faltando poucas semanas, eu já queria adicionar outras metodologias, como entrevistas, em uma pesquisa que já estava na fase final. A questão é que a gente mesmo como jovem graduando tem dificuldade em entender nosso papel nas ciências sociais e nos enxergar também como pesquisador. Quando eu estava escrevendo, minha maior dificuldade foi entender que esse era apenas um pontapé inicial de uma pesquisa que eu poderia levando adiante no mestrado. Na ansiedade de um jovem graduando eu queria desenvolver em poucos meses uma pesquisa de doutorado. Mas aí que entrava o trabalho da minha orientadora, que me trazia de volta a realidade me apontando o que eu realmente podia fazer naquele momento. Hoje eu percebo como essa pesquisa foi essencial para o trabalho que eu desenvolvo atualmente no mestrado. Sem ela eu jamais poderia avançar como estou fazendo agora. DES: Quais problemas sociais você considera fundamentais de serem discutidos para uma reflexão sobre o tema da desigualdade? EMERSON: Acredito que a pauta mais urgente seja o genocídio da juventude negra, que está diretamente relacionado às políticas de combate às drogas e ao encarceramento em massa. Não é à toa que, mesmo vivendo uma pandemia, nos últimos domingos diversos grupos de manifestantes foram às ruas para protestar contra a morte de Miguel e João Pedro. Nos Estados Unidos, a morte de George Floyd serviu como estopim para uma onda de protestos anti-racistas que fizeram até com que o presidente Trump se escondesse no bunker da Casa Branca. No Brasil, por sua vez, enquanto o estopim foi a morte de João Pedro, a notícia do caso de Miguel evidenciou como a falta de empatia pelos corpos negros está presente em qualquer lugar e a qualquer momento, e essas vidas valem menos do que um serviço de manicure. Não é a toa que antes de João Pedro, tantas crianças e jovens negros já se foram da mesma forma, sem que houvesse qualquer comoção por parte da mídia e da população branca. Sem contar também o genocídio das populações indígenas que, apesar ter em sua origem outros fatores, também não ganha qualquer visibilidade na sociedade. Vale mencionar também que, em uma luta pelo fim desses genocídios, a pauta do desencarceramento ocupa um papel central. Recentemente viralizou um vídeo nas redes sociais onde uma blogueira “explicava” as razões pelo qual o racismo brasileiro é tão natural. Segundo ela, as estatísticas mostram que a população negra é a que mais comete crimes e por isso justifica seu racismo em relação a essa grupo. De fato, o Brasil é o terceiro país com a maior população carcerária do mundo, só perdendo para os Estados Unidos e a China. Aqui, as mulheres negras tem a maior taxa de encarceramento, com o número de prisões crescendo disparadamente principalmente pelos crimes previstos na lei de drogas, e no geral, a classificação étnico-racial da maioria da população carcerária é de pretos e pardos. Mas será que isso indica que essa é a população que mais comete crimes ou a única que é criminalizada? Em outras palavras, será que a população branca não comete crimes ou os crimes que a mesma comete não são passíveis de uma repressão no mesmo nível? Afinal, e os crimes de evasão fiscal, roubo de dinheiro público, escravidão, desalojamento de populações entre outros que passam despercebidos e causam danos muito piores? E as apreensões de toneladas de drogas em portos, aeroportos ou até mesmo helicópteros cuja investigação nunca leva a nada? Ou então, por que as festas raves e baladas da Zona Sul, com seus tantos usuários e traficantes de droga, também não são alvos das mesmas ações policiais que invadem sem mandado qualquer casa na favela? A questão não é quem comete mais ou menos crimes, mas sim quem é criminalizado pelos seus atos. Logo, se na década de 90 deixamos um suposto Estado de bem-estar social que no Brasil já nunca existiu, entramos num estado penal cuja forma de lidar com as desigualdade sociais seria através do controle operado pelo sistema penal. A prisão nem sempre existiu e antes as formas de punição tinham outras características que, para alguns, eram até mais severas. Mas o fim da execução em praça pública e o desenvolvimento da prisão como forma de punição, por exemplo, não se deu por causas humanitárias mas sim por novas necessidades de controle em uma sociedade cujo grupos hegemônicos possuíam novos interesses, agora muito mais ligado a propriedade privada e ao desenvolvimento do capitalismo. Logo, longe de ser quem mais comete crimes na sociedade, a população negra apenas é o alvo das políticas penais de um Estado neoliberal. Por fim, adentrando o campo da luta por políticas sociais de reparação a todo esse cenário historicamente enfrentado pela população negra, o debate acerca das cotas raciais, assim como a questão do colorismo (do pardo e do preto) é essencial para que a gente fortaleça nossas políticas públicas de combate às desigualdades sociais. A fim de formular políticas efetivas, acredito ser necessário a participação de estudiosos das ciências sociais, assim como acontece na Comissão de Heteroidentificação da UFF que conta com a presença de alguns antropólogos negros em seu processo de formulação. Já é bastante difícil falar sobre cotas raciais e mais ainda sobre quem tem direito a elas, uma vez que vivemos num país que sempre apagou qualquer possibilidade de construção de uma identidade racial por trás de um discurso mentiroso de uma democracia racial. E quando finalmente o movimento negro conseguiu uma política mínima de reparação nós temos, por um lado o preto que não se sente no direito de se beneficiar desse sistema (pois ainda acredita ser injusto), e por outro, pessoas pardas que não se identificam como negras devido o apagamento racial que sofrem com as políticas de embranquecimento em vigência nesse país. E nesse processo, muitos brancos fazem uso indevido desse sistema, seja por má índole ou porque também não sabem realmente se são brancos ou pardos. Daí a importância das comissões que são sempre muito atacadas pela imagem negativa de estabelecerem um ‘tribunal racial’, mas que devem, sobretudo, serem defendidas por quem realmente apoia essa política de reparação. DES: Como você vê o impacto das políticas sociais nas questões tratadas no seu TCC? EMERSON: Acredito que no meu TCC fica perceptível como as políticas sociais do Estado em relação a questão das drogas estão voltadas a área da Segurança Pública, seja na forma de lidar com os usuários e traficantes de drogas ou com o gênero musical do funk. No primeiro, seria necessário políticas de saúde para lidar com quem faz uso abusivo das substâncias ilícitas, assim como é previsto na própria Lei de Drogas através do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad), com medidas para a prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas. Na teoria, a fim de atingir esses objetivos espera-se que esse sistema atue de forma articulada com o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), como diz o próprio texto da lei, mas na prática, grande parte do tratamento do usuário fica a cargo das Comunidades Terapêuticas, entidades privadas de tratamento a dependentes químicos normalmente ligadas às igrejas e que recebem milhões do governo federal mesmo sem a existência de dados objetivos sobre sua eficiência e denúncias de tratamentos abusivos baseados na superdosagem de remédios, trabalhos forçados ou castigos físicos. Dessa maneira, a eficiência na articulação entre o Sisnad e os órgãos governamentais de saúde se tornam um tanto dúbias, principalmente se levarmos em consideração sua expressiva articulação com as instituições penais onde jovens negros pegos com pouca quantidade de droga (o que indicaria apenas ser usuário) acaba resultando em uma prisão por tráfico. Nesse caso, a eficiência das políticas de repressão proibicionista é tão certeira que nunca para de se modificar, pois se atualiza o tempo todo para manter sua capacidade de controle social. No que diz em relação ao funk e a vida nas favelas e periferias, o Estado desenvolve políticas que visam criminalizar e matar a juventude que mora nesses lugares ao invés de mudar a realidade local por meio de políticas de incentivo a cultura, lazer, educação, entre outros direitos básicos. Como dito anteriormente, isso resulta das políticas neoliberais adotadas no Brasil desde a década de 90, que já não enxergam mais a intervenção social do Estado como forma de combater as desigualdades sociais. Na falta de um agente que investe socialmente naquele local, o tráfico pode assumir essa função e, no caso do funk, o baile funk se torna uma das poucas opções de lazer desses moradores. Esse cenário todo só marginaliza ainda mais essa juventude e serve como justificativa para o Estado intervir, porém apenas através do campo da segurança pública. Assim as operações policiais nesses lugares se tornam uma realidade constante e ainda, sob o discurso de combate ao tráfico de drogas, mortes como as de João Pedro, de Ágatha Félix ou dos nove jovens do baile da DZ7 se tornam “normal”. Logo, a política social do Estado tem nome: necropolítica; um projeto político onde há um poder soberano em decidir quem pode viver e quem deve morrer. DES: Quais recortes, como gênero e raça, você considera importantes na análise da desigualdade brasileira? EMERSON: Acredito que é primordial entendermos sempre nosso contexto brasileiro ao analisar a desigualdade no país. Parece óbvio, mas a realidade é que muitas vezes importamos teorias estrangeiras, principalmente norte-americanas, sem que haja uma atualização do debate para a realidade da sociedade brasileira. Por exemplo, isso acontece muito ao discutir o papel do racismo como gerador dessas desigualdades. A forma com que ele se manifesta no Brasil e nos Estados Unidos é completamente diferente, mesmo que um possa servir de base para os estudos do outro. Dito isso, ao invés de recortes, acredito que precisamos falar sobre interseccionalidade. Finalmente vivemos numa época em que muito se debate as questões vistas por alguns como ‘identitárias’, como gênero e raça. Mas sinto que ainda falta uma compreensão maior dessas estruturas sociais dentro de seus diversos contextos de desigualdade, como quando estão atrelados a outros fatores como idade ou nacionalidade. Não podemos resumir a desigualdade social a diferença de classe apenas, mas sim compreendê-la dentro do todo, isto é, a partir das conexões existentes entre esses recortes. DES: Quais teóricos você usou para fundamentar seu trabalho e você acha que devem ser relidos para discutir o enfrentamento das desigualdades sociais? EMERSON: Os dois principais foram: Foucault e Achille Mbembe. Entretanto, acredito que o Mbembe e todo o seu trabalho sobre a necropolítica seja o debate mais urgente atualmente. Também utilizei e recomendo a Ana Luiza Pinheiro Flauzina e Angela Davis. Por último, também recomendo um que não aprofundei tanto na minha pesquisa: Aníbal Quijano. Ele é um importante intelectual que procura analisar a sociedade a partir de uma perspectiva latino-americana, trabalhando com o conceito de decolonialidade. DES: Na sua opinião, qual a relevância de realizar pesquisas sobre desigualdades no Brasil? Como você avalia o cenário para desenvolvimentos de pesquisa hoje no Brasil? EMERSON: Acho importantíssimo. É incrível como podemos realizar diagnósticos para inúmeros problemas sociais brasileiros, porém, pelo teor muitas vezes crítico às políticas governamentais, o desenvolvimento da pesquisa na área das Ciências Sociais ainda é bastante sabotado em nosso país. Muitas pessoas possuem dificuldade em entender o que fazemos e acredito que isso também é incentivado pelo governo brasileiro. Vivemos em um país que não valoriza nossa área e muito provavelmente esse é um dos motivos pelo qual vivemos num profundo cenário de desigualdade social. Acredito que nossa área é a mais afetada nas políticas de desmonte da universidade pública. É claro que querem acabar com a universidade como um todo, mas mais ainda com as pesquisas livres dentro das áreas sociais. A ideia é submeter essas pesquisas às instituições privadas e aos interesses das empresas, diferente do que se pretende os programas de pós-graduação das áreas sociais em uma universidade pública. Os cortes de bolsas nesses programas, como a portaria 34/2020 da CAPES, faz parte desse cenário de desmonte público assim como a exclusão dos cursos de humanas do edital de bolsas de iniciação científica do CNPQ. Qual o objetivo de um país que não incentiva o desenvolvimento científico em áreas como Educação, Direito, Ciências Sociais e Filosofia? A questão é que atualmente a imagem pública dessas áreas, sobretudo da Sociologia, é que são muito mais “cursos de esquerda” do que um conhecimento científico. Eu percebo que ainda temos muito o que fazer quando, diante desse cenário todo, as associações de pesquisadores dessas áreas precisam constantemente reafirmar o caráter científico das mesmas, algo que talvez não seja compreendido tanto pelos políticos de direita quanto pelos de esquerda. Todos enxergam que a Sociologia apenas incentiva a produção de ideias e pensamentos críticos, mas não conseguem compreender como em todos os programas de pesquisa existem métodos rigorosos que fazem dessa área uma ciência como a Física, a Química ou qualquer outra área das ciências da natureza. Por esses motivos, não avalio de forma otimista o futuro da pesquisa sociológica no Brasil. Além de tudo isso, vivemos em um momento onde o governo brasileiro esconde dados estatísticos para não revelar a realidade da crise sanitária que está em curso. Para que as Ciências Humanas se desenvolvam é necessário investimento de recursos e que esse conhecimento a ser produzido esteja livre dos interesses do Estado, de grupos religiosos e em constante diálogo com a sociedade, tal como se propõe a universidade pública.
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